sábado, 17 de janeiro de 2009

Kaká e o sacrifício


O Manchester City, como qualquer pessoa que acompanha futebol sabe, ofereceu um navio de dinheiro ao Milan pelo brasileiro Kaká. A cifra mais recente era de 243 milhões de libras esterlinas, ou quase 270 milhões de euros, ou cerca de 840 milhões de reais.

Talvez desse para salvar algum desses bancos falidos por aí com tanto dinheiro.

E ainda bem que a moeda italiana não é mais a lira. Nos tempos em que andei por lá, 1 dólar valia 1.300 liras, e 1.300 liras mal pagavam um café. A piadinha em relação aos cálculos de quantias em milhões de dólares era: 

—Trocentos milhões de dólares? Quantas liras dá isso? 

—Todas.

Voltando a Kaká, lê-se nos blogs e em colunas de jornal opiniões sobre o caso. Kaká afirma que ele não pensa só no dinheiro, que ele só vai para o City se o clube contratar outros grandes jogadores e formar um grande time, o que o permitiria disputar — e ganhar — títulos importantes. Fala-se que Kaká está diante do dilema de continuar em um lugar onde trabalha com prazer, e onde todos gostam dele, ou sair para uma aventura, para o desconhecido, em troca de muito dinheiro.

Não é apenas, porém, uma questão de trocar um bom lugar para trabalhar e uma cidade agradável por um salário maior. Seria assim se Kaká fosse, digamos, um jornalista, um bancário, um fulano qualquer que apenas recebe salário. Mas Kaká, como qualquer jogador de futebol, é um patrimônio do clube. E um patrimônio frágil, pois tem curta data de validade — alguns anos no auge da forma física — e só pode ser trocado por tantos milhões enquanto estiver no auge da forma técnica. Ronaldo, aquele, saiu do Milan pela porta dos fundos, lesionado, fora de forma e valendo alguns tostões.

Seria uma decisão simples se Kaká apenas fosse receber um salário maior no Manchester City e pesasse prós e contras disso. Mas, é o Milan que vai embolsar boa parte dos 270 milhões de euros. Isso significa quase o dobro da receita do clube na temporada 2006/07, que foi de 170 milhões de euros, segundo o último ranking Football Money League, da Deloitte Consulting (a propósito, não vi essa comparação em nenhuma matéria, os neurônios dos jornalistas esportivos ainda estão de férias). 

É um dinheiro que não será oferecido novamente por um jogador de futebol em muitos anos. Um dinheiro que o Milan jamais verá cair em seus cofres de uma vez só. Por isso, a decisão de Kaká não é pessoal, não é uma escolha que afetará apenas sua vida. Há um clube de futebol, um dos mais importantes do mundo, ávido por esse dinheiro. E essa é uma oportunidade única, pois, como qualquer coisa que possa ser trocada por dinheiro, Kaká só vale o que o mercado estiver disposto a pagar. E há um príncipe árabe louquinho para fazer isso.

Kaká pode ter o sonho de envelhecer no Milan. Só precisa saber se o Milan tem o sonho de vê-lo envelhecer lá ou de encher o cofre com sua venda. Sim, todo mundo no Milan o adora, ele é querido pelos companheiros, pelos donos do time, pela torcida. Entretanto, diante dessa oferta milionária, talvez o clube goste ainda mais dele se ele aceitar. 

Como se dissessem: "a gente gosta de você aqui, mas vai gostar mais ainda de você lá longe".

Talvez Kaká não queira ir para o Manchester City. A cidade é sem graça, o clube não tem tradição, ele não seria lá tão feliz quanto é em Milão. Mas, se ficar, continuaria a ser feliz no Milan? Qual o tamanho do retorno que Kaká teria de dar ao clube para compensar os 270 milhões de euros perdidos? Seria possível a um único jogador, por mais espetacular que seja, assumir a responsabilidade por fazer o time jogar bem e ganhar todos os títulos que disputa, se há mais dez em campo ao lado dele?

Qual o tamanho da cobrança sobre Kaká se ele ficar? Continuará a ser adorado e querido por todos, ou será olhado como o jogador que impediu o clube de embolsar um dinheiro absurdo apenas para satisfazer seus projetos pessoais? Continuará Kaká a ser feliz no Milan se for tratado como, digamos, um traidor?

É como o filho primogênito, ou algum ungido da aldeia, mandado ao sacrifício. Tem de morrer por uma causa maior — aplacar a ira dos deuses, salvar os outros dos pecados — para permitir que aquela comunidade continue a existir. 

Kaká tem de ir para onde talvez não queira para que o Milan ganhe uma quantia de dinheiro impensável e usufrua dela por muitos e muitos anos. Se ficar, pode talvez ser visto como o primogênito que se recusou ao sacrifício. Ou como o ungido que colocou seu projeto pessoal acima das necessidades da aldeia, em detrimento da sobrevivência de toda a comunidade que o venera.

Por isso, Kaká tem diante de si não apenas uma opção pessoal. Se for para o Manchester City, pode ser visto pela imprensa ou por quem está fora do Milan como um mercenário, que só pensa em dinheiro. Entretanto, se não for, pode ser visto dentro do Milan, que é a comunidade que o acolhe, como aquele que se recusou ao sacrifício, como um covarde, e cair em desgraça diante dessa mesma comunidade que hoje o venera.

Não é uma decisão fácil. Não tenho pena dele, pois não tenho pena de ninguém que dispõe de milhões de dólares para resolver seus problemas. Tenho pena é dos 4 bilhões de seres humanos deste planeta que não têm o mínimo necessário para viver com dignidade.

Mesmo assim, os ombros do Kaká nunca mais serão leves. Qualquer decisão que ele tome lhe pesará por muitos anos.


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